domingo, 5 de janeiro de 2014

Leto e contemporaneidade - a questão trans*

Claro que a gente não pode esperar dos mitos uma relação direta com questões contemporâneas, mas eu tenho pensando muito em Leto conforme me envolvo mais com a causa transfeminista.




Já faz um bom tempo em que eu tenho pensado na relação de Leto com quem é trans*. Uma protetora, patrona dessa causa.

Um dos mitos de Leto dizem respeito a um jovenzinho chamado Leukippos, na cidade de Phaistos, em Creta.

A mãe de Leukippos se chamava Galatea. Quando ela ficou grávida, o pai, Lampros, orou aos deuses pedindo por um filho, e disse a Galatea que caso a criança que nascesse fosse uma menina, ele mataria o bebê.

Ele, que era pastor, não estava em casa quando a criança nasceu. Uma criança designada como menina.

E ai vem a ponta interessante. Galatea teve sonhos e visões que diziam que que a criança deveria ser criada como um rapaz.



E foi assim que Leukippos foi crescendo, como um garotinho cretense qualquer. Até que chegou a adolescência e suas transformações, e Galatea, em desespero de medo pela possibilidade do marido matar o filho e porque já não tinha como esconder a situação, foi até o templo de Leto, rezando e implorando com desespero para que Leto ajudasse. Outras versões dão conta de que Leukippos foi prometido em casamento a uma moça por quem estava apaixonado, e que procurou o templo de Leto com a mãe às vésperas do casamento implorando ajuda por causa disso. 

E Leto, comovida pela situação, mudou o corpo de Leukippos para que ele se adequasse à sua identidade.

Por isso ela foi conhecida pelo epíteto Phytie, enxertadora, porque a mudança genital foi comparada à enxertia. E a partir daí havia um festival em Phaistos celebrando a situação - a Ekdysia, desnudamento, porque Leukippos foi despido do peplo de menina para se vestir como rapaz. E no templo de Leto inclusive havia uma estátua dele celebrando a coisa toda, já que ele provavelmente foi cultuado como herói.



Claro que a gente não pode comparar uma sociedade e sua realidade com outra, mas trazendo para um olhar contemporâneo, eu acho esse mito muito bonito. Primeiro, os sonhos/visões de Galatea: Leukippos não era uma menina, não devia ser criado como menina, mas como menino.

Depois, a ideia do milagre, e penso que em um processo tão delicado e difícil quanto vivenciar uma redesignação, o quanto isso não coloca Leto como uma protetora de quem passa por esse processo. Em um mundo onde as mães muitas vezes viram as costas para os filhxs, essa presença maternal divina tendo um olhar de cuidado para quem está nessa situação.

E então nós temos Leto, a mais gentil, e ao mesmo tempo, aquela que defende os filhos com a fúria de uma loba, transformando gente em sapo e ordenando massacres para proteger seus filhos, tendo um olhar de amparo sobre essa população.

Eu fico pensando em como os mitos menos mainstream as vezes carregam delicadezas que ajudam a dar significado para a vida. Claro que para mim como devota e politeísta, isso reforça minha sensação de que tenho uma motivação extra em apoiar essa causa. Mas no geral, os mitos são, seja a pessoa ligada àquela religião ou não, um jeito de dar forma e significado para as experiências. De percebermos que sempre temos heróis em que nos espelhar e de que nunca estamos sozinhos: muitos já navegaram esse rio antes, e estão ao nosso lado.


Acima de tudo, nesta noite, fica meu desejo de que esse olhar gentil de Leto minimize as dores que nossa sociedade ainda tão binária e preconceituosa causa às pessoas.




 

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