sábado, 29 de outubro de 2016

Noites de outubro e vasos de hera

As vezes a vida nos atropela. É estranho porque não acontece de repente, é algo gradual. Quando você se dá conta, está afogado em tanta coisa que não dá conta de respirar.

Acho que a única constante nesse caos foram os deuses. Não importa que espiral de loucura eu estivesse enfiada até o pescoço, minha relação com o divino sempre foi uma pequena ilha de estabilidade onde me ancorar.

Tenho aprendido um bocado. As vezes, é puxado. As vezes, você retorna para as coisas mais simples.

Como um vaso de hera.

Eu tive vasos de hera algumas dezenas de vezes. Pode parecer besta, porque depois que está adaptada é uma planta que se vira por conta própria. Mas em vaso, exige uma manutenção simples mais constante. Regar pelo menos uma vez por dia, mas dependendo do clima, duas. A terra precisa estar sempre úmida. é uma planta "fria" que não se dá bem com sol forte, mas precisa de luz.

E se você vacila, ela seca.

Acho que é muito didático do processo de devoção, o cuidado com as plantas. Mais ainda quando se é devota de uma divindade que é assim, vegetal, em sua natureza.

Uns dois anos atrás, eu escrevi uma anotação meio assim "por uma vida de rosas e hera", "quero uma vida de rosas e hera". As duas plantas registradas na minha pele, e carregadas de tanto valor simbólico.

Foi logo depois que eu me vi às voltas com meu vaso de hera que meu companheiro decidiu que queria plantar rosas. E perto da jardineira de heras, porque eu sempre procuro variedades diferentes dela, foi surgindo uma linha de vasos de rosas.

Eu tenho uma grande rosa alba no jardim. Ela tem mais ou menos minha idade. Dá cachos de rosas toda lua nova, que chegam a ter vinte, trinta rosas em um cacho. É uma roseira boa para fazer remédio. Mas as rosas coloridas dos vasos tem uma outra natureza, não é a serenidade ampla do espinheiro cobrindo o muro, é aquela explosão de cor em um espaço tão restrito.

A vida, apesar do caos, se fixou em rosas e hera. E a hera anda tão luxuriante que eu preciso comprar outra jardineira, porque ela tem se espalhado e criado caminhos, tentando buscar mais espaço, a jardineira explodindo em tons de verde.

O verão vai abrindo caminho na primavera e nessas noites quentes, eu me sento na varanda para escrever. Até aqui, ao que parece, eu poderia escrever em noites assim.




sexta-feira, 26 de junho de 2015

26 de junho - em memória de Juliano


"Que todas as pessoas vivam em harmonia ... Os homens devem ser ensinados e conquistados pela razão, não por golpes, insultos e castigos corporais."

Essas palavras são do Imperador Juliano. Que seus detratores chamaram "o apóstata" quando ele era de fato, o mais piedoso.

Hoje relembramos a morte dele. Por uma lâmina que era provavelmente romana, por ter sido ele o defensor da liberdade religiosa. Por ter sido ele o homem sábio que estava disposto a dar liberdade de culto mas que combateu as vantagens estatais dadas aos cristãos. Juliano que permitiu que os judeus pudessem demonstrar sua fé livremente, coisa que os cristãos não permitiam. Que considerava que os caminhos antigos deveriam ter seu espaço de direito. Que exigiu que o pensamento racional estivesse no comando e não a vontade de quem queria impor sua forma de pensar.

Juliano, que instava as pessoas a buscarem sua própria verdade. Juliano, o neo platônico que não exigia de ninguém que pensasse como ele: mas exigia que ninguém interferisse na forma como outros fossem expressar sua fé.

Hoje, diante de um estado de totalitarismo religioso cada vez mais pesado, diante dos desmandos, do assassinato e da perseguição que mais uma vez os "galileus" como ele diria, demandam quando chegam ao poder, hoje mais do que nunca eu ergo a sua bandeira.

Hoje, mais do nunca, eu ergo minha chama na direção do por do sol e relembro o imperador asceta, o general filósofo. O por do sol que assistiu a chama de Juliano se apagar.

Seus soldados esperam por você.

Esperamos por um tempo onde seu ideal de liberdade e tolerância religiosa não seja algo que os galileus estejam tão dispostos a destruir.

Que o Sol Invicto se erga sobre um mundo onde a bandeira de Juliano tremule trazendo tolerância.

Termino com mais uma citação de Juliano:

 "Enquanto for escravo das opiniões da maiora, você ainda não terá se aproximado da liberdade ou provado seu néctar... Mas eu não quero dizer com isso que devemos agir de forma vergonhosa diante de todos os homen, e para fazer o que não devemos; mas que tudo o que fizermos ou nos abstermos, não vamos fazer ou deixar de fazer apenas porque a multidão de alguma forma considera  honroso ou certo, mas porque é proibido pela razão e pelo divino dentro de nós."

domingo, 5 de janeiro de 2014

Leto e contemporaneidade - a questão trans*

Claro que a gente não pode esperar dos mitos uma relação direta com questões contemporâneas, mas eu tenho pensando muito em Leto conforme me envolvo mais com a causa transfeminista.




Já faz um bom tempo em que eu tenho pensado na relação de Leto com quem é trans*. Uma protetora, patrona dessa causa.

Um dos mitos de Leto dizem respeito a um jovenzinho chamado Leukippos, na cidade de Phaistos, em Creta.

A mãe de Leukippos se chamava Galatea. Quando ela ficou grávida, o pai, Lampros, orou aos deuses pedindo por um filho, e disse a Galatea que caso a criança que nascesse fosse uma menina, ele mataria o bebê.

Ele, que era pastor, não estava em casa quando a criança nasceu. Uma criança designada como menina.

E ai vem a ponta interessante. Galatea teve sonhos e visões que diziam que que a criança deveria ser criada como um rapaz.



E foi assim que Leukippos foi crescendo, como um garotinho cretense qualquer. Até que chegou a adolescência e suas transformações, e Galatea, em desespero de medo pela possibilidade do marido matar o filho e porque já não tinha como esconder a situação, foi até o templo de Leto, rezando e implorando com desespero para que Leto ajudasse. Outras versões dão conta de que Leukippos foi prometido em casamento a uma moça por quem estava apaixonado, e que procurou o templo de Leto com a mãe às vésperas do casamento implorando ajuda por causa disso. 

E Leto, comovida pela situação, mudou o corpo de Leukippos para que ele se adequasse à sua identidade.

Por isso ela foi conhecida pelo epíteto Phytie, enxertadora, porque a mudança genital foi comparada à enxertia. E a partir daí havia um festival em Phaistos celebrando a situação - a Ekdysia, desnudamento, porque Leukippos foi despido do peplo de menina para se vestir como rapaz. E no templo de Leto inclusive havia uma estátua dele celebrando a coisa toda, já que ele provavelmente foi cultuado como herói.



Claro que a gente não pode comparar uma sociedade e sua realidade com outra, mas trazendo para um olhar contemporâneo, eu acho esse mito muito bonito. Primeiro, os sonhos/visões de Galatea: Leukippos não era uma menina, não devia ser criado como menina, mas como menino.

Depois, a ideia do milagre, e penso que em um processo tão delicado e difícil quanto vivenciar uma redesignação, o quanto isso não coloca Leto como uma protetora de quem passa por esse processo. Em um mundo onde as mães muitas vezes viram as costas para os filhxs, essa presença maternal divina tendo um olhar de cuidado para quem está nessa situação.

E então nós temos Leto, a mais gentil, e ao mesmo tempo, aquela que defende os filhos com a fúria de uma loba, transformando gente em sapo e ordenando massacres para proteger seus filhos, tendo um olhar de amparo sobre essa população.

Eu fico pensando em como os mitos menos mainstream as vezes carregam delicadezas que ajudam a dar significado para a vida. Claro que para mim como devota e politeísta, isso reforça minha sensação de que tenho uma motivação extra em apoiar essa causa. Mas no geral, os mitos são, seja a pessoa ligada àquela religião ou não, um jeito de dar forma e significado para as experiências. De percebermos que sempre temos heróis em que nos espelhar e de que nunca estamos sozinhos: muitos já navegaram esse rio antes, e estão ao nosso lado.


Acima de tudo, nesta noite, fica meu desejo de que esse olhar gentil de Leto minimize as dores que nossa sociedade ainda tão binária e preconceituosa causa às pessoas.




segunda-feira, 17 de junho de 2013

Diante das manifestações e tudo o mais...

O helenismo prevê uma religião cívica. Envolvida com as questões da pólis. Por isso, em tempos de Revolta do Vinagre, escrevi esse rito para pedir o auxílio dos deuses para essa causa.

Divulguem a vontade.

Peguem o PDF do rito clicando aqui.

Lembrando que não adianta rezar e não se mobilizar.

E lembrando que essa é uma iniciativa pessoal minha não relacionada com nenhum grupo helênico a quem eu possa ser relacionada.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A mênade e o monge

Não se falavam muito. Estavam afinal, cada um sentado em uma montanha, com uma ravina enorme entre eles. E para quem olhasse sem saber, nada seria mais diferente do que aqueles dois.

Ele, com suas vestes compridas e escuras, e seu chapéu, sua barba densa, seu silêncio, seu rosário.
Ela, vestida de açafrão, sua coroa de hera, seus pés descalços, seu grito, seu tirso.

Mas quando a manhã a encontrou deitada sob o sol que nascia, apoiada no rochedo olhando o céu, ele estava de mãos erguidas na direção do mesmo sol, e cantava, um tom grave e monocórdio que a comoveu. E ele sentou sobre o rochedo da sua própria montanha, e contemplaram em silêncio o mesmo céu durante horas.

E quando ela dançou, diante do fogo do altar, hineando seu senhor com palavras amorosas sob as estrelas, ele se comoveu. E respondeu com as palavras de amor que dedicava ao seu próprio senhor. E um canto respondia ao outro.

Sentados na beira do abismo, balançando os pés no vazio, conversavam sobre amor, as palavras entrecortadas sendo carregadas pelo vento. Precisavam esperar o vento mudar de direção, para ouvirem a resposta do outro. Mas agradeciam a gentileza do vento mesmo assim. E eram dois adolescentes falando dos Amados, trocando confidências de primeiro amor.

Ela descia a montanha e se encontrava com mulheres que riam e filósofos de estranho olhar. E ele descia a montanha e se encontrava com homens que riam e filósofas de estranho olhar. E se encontravam nas mesmas assembléias para falar de história, política e poesia, e subiam de volta suas montanhas com belas lembranças.

Ela se encontrava com sátiros e ninfas, e bons daemons que levavam sua voz ao éter. Ele se encontrava com ninfas e sátiros, e anjos que levavam sua voz ao éter.

Seus cantos falavam de um deus que tinha longos cachos e caminhava pelo mundo levando alegria e vinho. Falavam de sacrifício divino e de libertação. E cada um com sua voz e sua visão, viviam a delícia do amor divino.

Contemplação e dança, oração e canto, e acima de tudo, o amor apaixonado por um deus.

Diferentes deuses, diferentes vozes. O mesmo amor pelo Amado, a mesma contemplação da doçura. A mesma escura noite.

Não importava o que dissessem nas cidades, aqueles que seguiam ao invés de amar. Ali nas montanhas, olhavam com carinho um para o outro os dois eremitas.

Só os apaixonados compreendem outro apaixonado...



para um querido amigo que me faz acreditar possível a paz e o respeito.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Marcas

O plano surgiu faz tempo. Maturou, se ajustou. Foi se aconchegando na mente. Então, o presente que ganhei do meu querido Coiote. E lá estava eu, sentada na maca do estúdio de tatuagem.

É como tornar visível um compromisso que eu assumi faz tempo. É colocar uma devoção em nível físico. Tornar indelével. Não é algo de um verão, não é um momento. É o compromisso maior que tenho, para a vida inteira. É uma declaração de amor, também. Acho que é uma declaração de amor, mais do que tudo.

Agora, ela já é parte de mim, e eu quase consigo não ficar olhando a marca sobre a pele feito besta. É como se eu tivesse nascido assim. Minhas tatuagens me são tão naturais que me parecem orgânicas.

Eu escrevi um dia desses que queria uma vida feita de hera e rosas. E é assim que marquei minha pele. A rosa, que fiz como compromisso eterno com a arte e a beleza, e que com a passagem dos anos passei a ver como uma marca devocional para Afrodite.  E agora, a hera. Um amor que não sei colocar em palavras, porque é arreton.A presença de Dionísio e tudo que ele significa.

Essa foi a primeira foto que tirei quando a cicatrização já estava quase ok. No dia 25 de agosto, no jardim da Casa das Rosas, para mim, sempre e sempre o lugar onde Dionísio e Apolo tomam chá e dividem um cigarro.



Agora, meu corpo tem uma "god mark". Eu carrego na pele a hera e a rosa.




(e o plano prossegue: quando eu me sentir pronta, no pé esquerdo vai o louro e o nome de Apolo. Mas não tenho pressa. Como eu disse, é para ser orgânico. como o crescimento das plantas)

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Contar histórias, aprender histórias

As vezes, me vejo contando um mito para alguém. Hoje isso aconteceu duas vezes. Curiosamente, os dois mitos, de Psiquê e Eros, e de Pandora, carregam um elemento em comum: a confiança. Hoje falei de confiança, de sofrimento, e de esperança. E foi interessante perceber como os mitos nos ensinam, quando falam conosco usando uma linguagem tão natural como a do sonho. Falam verdades múltiplas, algumas literais, algumas simbólicas. Algumas vezes, um simbolismo que nos toca de modo pessoal.

E estava relendo umas passagens do Nonnus de Panópolis, um autor que escreveu sobre Dionísio. E a passagem da morte de Ampelos é de uma beleza ímpar. E cada vez que leio, encontro um detalhe novo.

De certo modo, também é um mito que fala de amor, de "tentação", sofrimento e superação.

Contar histórias, aprender histórias, relembrar histórias. E eu fico feliz de poder ouvir e falar disso.

Aprendizado é um tipo de teia. E a cada vez encontramos exatamente os mestres que precisávamos para nos mostrar o caminho.

Eros e Psiquê, Anthony Van Dyck

 

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