E digo queridos porque tenho um enorme número de amigos ateus. Funciona assim: eu não questiono sua falta de fé,eles não questionam minha fé. Mas eles retwittam um bocado de coisas. Postam links para vídeos, para textos, para artigos, sites. E eu sou, antes demais nada, anti clerical,e me divirto lendo piadas e coisinhas atéias. Acredito que a dúvida é saudável e que o ceticismo é um caminho tão válido quanto qualquer outro.
Justamente pelo grande respeito que tenho pelos ateus é que eu gostaria de expor alguns pontos que tem me incomodado bastante.
O primeiro deles é a postura "teleevangelista" de uma quantidade desproporcional de ateus. Eu espero que um ateu seja um humanista tolerante, como o são os ateus que convivo. Mas ao invés disso,encontro na internet um grande número de ateus crentes: atacam qualquer opinião diferente, de maneira agressiva e inconsequente, taxando todo aquele que tem fé como idiotas. Idiota é de fato a palavra preferida, junto com ignorante e inferior. Entendo que exista uma certa animosidade: assim como qualquer pessoa de religião não cristã tem um pé atrás com os cristãos depois de tantas agressões gratuitas. Mas acho que pé atrás não significa generalizações perigosas. E taxar o outro como inferior por ter um pensamento diferente do seu é fazer o jogo das religiões abraâmicas, que se acham superiores a todos os outros do mundo. Então imagine que estou eu, pacientemente tentando convencer alguém que ser ateu não torna ninguém maligno, e um desses ateus-crentes chega falando que somos todos uns incapazes ignorantes, idiotas que acreditam em papai noel. E lá vai minha conscientização e o trabalho de tantos ateus conscientes jogados na privada.
Ainda dentro dessa postura nós temos uma outra situação perigosa. São os ateus que adotaram a ciência como religião, no sentido ruim dessa palavra. Agarram-se a dogmas e escolhem alguns cientistas como profetas, e se recusam a falar do assunto exceto se for dentro de seus termos. Ai eu preciso ouvir meus amigos biólogos furiosos porque um infeliz deu um nome tão imbecil quanto "o gene egoísta" a um livro, atribuindo a um gene uma característica psicológica, o que gera uma impressão para lá de errada no público (e lembrando que a genética é por si só uma ciência que atrai multidões porque se adapta às idéias de superioridade, sexismo e intervenção exterior "divina" que são a base das religiões abraâmicas.). A ciência é algo genial- e eu me sinto abençoada porque na minha religião, ciência faz parte do processo. Mas a ciência é marcada pela moralidade, os preconceitos e as posturas da época em que ela acontece. E alguns ateus ainda carregam a visão positivista de uma ciência neutra e superior, racional e sem emoções que nos trará a salvação. Isso não é ser ateu, caramba. É esquecer a dúvida e a postura aberta diante dos fatos que caracteriza os ateus e se jogar numa realidade imaginária onde o nome do messias é Ciência.
Normalmente entre esses ateus estão os iconoclastas. Por iconoclasta entenda no sentido literal: os que acham que uma igreja barroca deveria ser demolida e seus santos queimados. Que diz que uma bomba deveria cair sobre o Vaticano. Eles acham que história não é ciência,aparentemente. E que a existência das religiões deveria ser banida. Eu sou arte educadora. Não posso falar deste assunto porque, tomada pela paixão, vou começar a mandar imprecações para todos os lados - eu abomino o desrespeito histórico, que é algo que nada tem a ver com fé.
E por fim, eu gostaria de reclamar dos pseudo ateus que na verdade fazem o jogo das religiões abraâmicas, agem como eles e não percebem. Aqueles que consideram que religião é só o cristianismo-islamismo-judaismo. Que não enxergam as outras religiões todas. E imputam os crimes das religiões abraâmicas como se fossem crimes de todas as fés.
Minha religião, por exemplo. Me diverti um bocado com a tirinha "Os 7 pecados da religião" Mas percebi que por esse ponto de vista, eu não tenho religião, já que não praticamos proselitismo, consideramos que para conhecer a fundo nossa fé é preciso estudar o que a ciência tem a dizer mais do que o que os mitos nos dizem, valorizamos o prazer, acreditamos que a racionalidade é importante na compreensão da vida, convivemos com os diferentes e expomos publicamente qualquer um que aja com hipocrisia. Claro que tem gente mala ou sem noção - isso é geral no mundo, não estou escrevendo esta carta justamente motivada pelos ateus sem noção? Mas de todo modo, partilho da visão religiosa dos mesmos filófosos gregos que muitos ateus citam, porque, independente de religião, eram homens sábios.
Mas eu preciso dizer que me incomoda. Muito. Agir como se apenas as religiões abraâmicas fossem religiões é concordar com o que essas religiões dizem sobre serem as únicas verdadeiras. Além disso, existe um desrespeito contra as religiões tribais, animistas e não eurocentristas. Reflexo, novamente, de uma visão distorcida do positivismo, em que os antropologistas consideravam que havia uma escala de evolução na fé humana, indo do mais selvagem, mais inferior, no animismo, e "evoluindo" até chegar no monoteismo que seria uma religião "superior". É como se um grande número de ateus tivesse apenas acrescentado um degrau a essa pirâmide, e não fosse capaz,ou não desejasse saber que todo o estudo antropológico do século XX e XXI refuta essa teoria, que é preconceituosa e descabida. Ninguém é inferior por acreditar ou não em algo. Eu refuto o conceito de que algum ser humano seja inferior. Mas no muito, podemos dizer que o que importa é aquilo que fazemos de nossa fé ou nossa ausência dela - e ambos os caminhos são justos e válidos.
Lendo o site do Ateus.net, encontrei um texto delicioso de A.C. Grayling, entitulado Tolerância. Repito aqui um trecho do artigo, para fechar por hoje e na esperança de que nesse caminho de tolerância nos inspire a todos:
É possível tolerar uma crença ou uma prática sem a aceitar. O que subjaz à tolerância é o reconhecimento de que o mundo é suficientemente vasto para permitir a coexistência de alternativas, e se nos sentimos ofendidos pelo que os outros fazem é porque já nos deixamos envolver demasiado. Toleramos melhor os outros quando sabemos como tolerar-nos a nós mesmos; aprender a fazê-lo constitui um objetivo da vida civilizada.
abraços cordiais.